“Reunir os conhecimentos dispersos sobre a
terra, tornar o sistema desses conhecimentos conhecidos dos homens com quem
convivemos e transmiti-los aos homens que nos hão de suceder” (Diderot).
O desejo de esquematizar os ramos do conhecimento é algo que
sempre se fez presente na história da humanidade, havendo notícias de esforços
nesse sentido desde a Antiguidade Clássica, com Aristóteles; passando por nomes
menos conhecidos como Marciano Capella (De Nuptiis Philologiae et
Mercurii) e Isidoro de Sevilla (Etymologiae); até a
reviravolta na metodologia científica idealizada por Francis Bacon (Instauratio
magna).
Todos esses autores, no entanto, desenvolveram um trabalho
majoritariamente classificatório, voltado à construção de uma justificativa para
a maneira como o conhecimento se estrutura, a fim de categorizá-lo.
Somente no século XVIII, no contexto da grande revolução do pensamento
promovida pelo Iluminismo, é que surge a ideia de reunir todo o conhecimento
humano existente em um único local.
Se a razão humana era a medida de todas as coisas e o pensamento crítico a
única maneira de se chegar ao verdadeiro conhecimento, fazia-se necessário
retirar da religião a primazia sobre a condução dos assuntos, devolvendo aos
homens a confiança em suas extraordinárias potencialidades e a sagacidade
necessária para se auto-determinarem.
Nesse
contexto, um grupo de intelectuais, liderados pelo filósofo e romancista Denis
Diderot e pelo matemático Jean le Rond d’Alembert,
abraçaram o projeto de construir a Enciclopédia ou Dicionário das
Ciências, Artes e Ofícios, a fim de ensejar a reflexão e o livre pensamento
e democratizar o acesso ao saber. Afinal, sob a ótica Iluminista, todos
nasciam livres e iguais em dignidade e direitos, não se sustentando sob nenhuma
ótica a permanência de uma classe de letrados e outra de ignorantes; mesmo
porque, em última instância, todas as classes, fossem elas de que natureza
fossem, haveriam de ser eliminadas.
Inicialmente,
porém, o intento do grupo era bem menos ambicioso: queriam apenas traduzir os
dois volumes da Cyclopaedia de Ephraim Chambers, dicionário
publicado em Londres em 1728. No processo, foi que resolveram produzir
uma obra original, de grande amplitude, que deveria a um só tempo expor a ordem
e o encadeamento dos conhecimentos humanos e abarcar os princípios gerais e
detalhes mais essenciais de cada ciência e arte, em um grande dicionário que
comportasse a teoria e a prática.
Nos
17 volumes e 11 plates, publicados entre 1751 e
1772, encontram-se contribuições de mais de 150 intelectuais de diversas
áreas, dentre os quais Rousseau, Voltaire, Montesquieu, Buffon, Turgot,
Condorcet e Quesnay. Fazemos questão, todavia, de uma menção especial
à Chevalier Louis de Jaucourt, pois, apesar de ser o
maior contribuidor da Encyclopédie, seu nome raramente é
citado.
Jaucourt escreveu cerca de 18.000 artigos sobre fisiologia, química, botânica, patologia e história política, o que corresponde a 25% de toda a Enciclopédia[1]. Começou modestamente, com apenas alguns artigos a partir do terceiro volume, mas foi ficando cada vez mais envolvido, a ponto de, entre 1759 e 1765, escrever em média 8 artigos da enciclopédia por dia. Dos volumes 10 a 17, Jacourt redigiu entre 30 e 45% dos artigos, fato que lhe rendeu o apelido de l'esclave de l’Encyclopédie (o Escravo da Enciclopédia).
Há que se ter em mente, no entanto, que, em que pese a variedade
de temas abrangidos e a ideia de conhecimento neutro e objetivo com que a
enciclopédia passou à posteridade, a Encyclopédie foi um
instrumento de subversão política. Seus artigos eram parciais, combativos,
assinados (com nome real ou fictício) por cada um de seus colaboradores.
Havia-se que destruir toda a superstição e intolerância. O povo precisava ser
educado para assim se liberta do jugo da opressão e da tirania.
As ferrenhas críticas à Igreja Católica e ao Absolutismo,
bem como sua redação em linguagem popular, em uma época em que o saber formal
estava restrito aos monges e intelectuais, levaram à proibição da obra em 1752,
com sua inclusão no Index Librorum Prohibitorum (lista de
livros proibidos pela Igreja Católica) em 1759. Tal perseguição, aliás, levou
D’Almbret a se afastar da direção do projeto, muito embora tenha continuado a
defender a propagação dos ideais iluministas até o fim de sua vida.
A aceitação da Enciclopédia, porém, foi tamanha, que ela
continuou a circular clandestinamente, alcançando as mais variadas classes
sociais, mesmo apesar de a imensa maioria da população francesa de então ser
analfabeta. Isto, inclusive, foi decisivo para a Revolução Francesa de 1789,
posto que permitiu que os ideais iluministas se tornassem do conhecimento de
todos, garantindo aderência à causa revolucionária no momento de sua eclosão.
Hoje, a enciclopédia faz parte do cotidiano de pessoas do mundo inteiro, seja
na forma física ou na virtual, confirmando-se enquanto verdadeiro oráculo do
saber universal. Se sabemos tanto e sobre tantas coisas, devemos muito àqueles
homens que, com uma crença inabalável no progresso e na lei natural, e
irresignados com toda e qualquer forma de opressão, arriscaram suas vidas
lançando-se no maior esforço intelectual e editorial de seu tempo, para
propagar e democratizar o acesso ao conhecimento.
***Para quem desejar saber mais sobre o assunto, recomendo que assista o vídeo
a seguir. Nele é possível ver a Professora Tili Boon Cuillé, especialista da
Universidade de Washington, falando sobre o tema (inclusive com algumas
curiosidades sobre o relacionamento dos enciclopedistas entre si) e há a
análise de partes de um exemplar da Encyclopédie preservado
até hoje. Vale muito a pena!
[1] Frank A. Kafker: Notices sur
les auteurs des dix-sept volumes de « discours » de l'Encyclopédie.
Recherches sur Diderot et sur l'Encyclopédie. 1989, Volume 7,
Numéro 7, p. 144
Também serviram de fonte de pesquisa para este texto:
* SIGLO DE LA RAZÓN. Los enciclopedistas - La Ilustración.
Departamento de Humanidades da Pontificia Universidad Javeriana. Disponível
em: http://pioneros.puj.edu.co/cronos/crono3/siglodelarazon/losenciclopedistas.htm
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