Retratos da Bahia em Brasas


Quando você passa a conviver a maior parte do tempo com uma pessoa que pensa como você, você passa a acreditar que a quase totalidade das pessoas enxerga o mundo como você. Pensa que tudo aquilo que você gostaria de dizer é óbvio e evidente demais e, portanto, não precisa ser dito.

Daí você passa um dia com um grupo diferente e passa a ser visto como um ET. Todo aquele óbvio parece ser ininteligível e, atônito, você se dá conta de que na verdade aqueles absurdos que estão sendo ditos e aceitos por todos são o pensamento dominante na sociedade.

Talvez seja a caixinha apartada que constitui o mundo universitário, totalmente desconectado das pessoas reais, que cause isso. O engraçado é que lá só se discute sobre a “sociedade” e o que é supostamente bom para “todos”, o “povo”, o “trabalhador”, o “homem comum”. Só que eles não fazem a menor ideia de quem é o homem comum. No seu churrasco goumert, com carne argentina e vinho do Chile, na casa de praia com os amigos bem-nascidos, eles não vêem a periferia reprimida explodir sua alegria contida num escaldante domingo de sol.

Não vêem o menino do queijo soprando fuligem sobre os pés descalços, a disputa cerrada por um milímetro de areia, ou as crianças pretas, vira-latas, de piratas a soberanas de um mar sem fim. Não ouvem o som degradante do carro de som, baixarias no mais alto tom, com musas nuas, achando-se sereias, enquanto abatidas para a ceia.

Não vim no comboio aos dez mil tambores; não comi farofa trazida de casa para enganar a fome; não dormi enrolada na canga embaixo da mesa de bar enquanto meus pais gastavam até o último centavo do dinheiro que não tinham para tentar justificar a vida. Mas, da minha varanda classe-média de um bairro majestoso periferizado, eu observo.

Observo e vejo a briga que surge nascida do álcool, as sereias e crias agora no asfalto, temerosas do claustro do verdadeiro rei. E os homens de farda, na pele também subalternos, que pegaram comboio e bateram tambor, jubilam ter roupa que inflige temor.

Cá de dentro escuto uma tia, orgulhosa das academias, justificar a arrogância porque habitual. O doutor ou o polícia podem se achar – é normal, é legal e é compreensível. Afinal, um estudou 7 anos para isso; o outro é uma autoridade. Concordam todos. Sobre as moças vendidas na pista, na tela e nas letras, o discurso da habitualidade mais uma vez tudo legitima. Ensaio discutir. Os ânimos se alteram. “Não é em tudo que se deve ser ‘intelectual’”.

Concordo, minha tia. Talvez se os “intelectuais” de Praia do Forte viessem à praia do povo no feriado, eu não ouviria coisas como as de hoje tanto dentro como fora da grade do portão. Talvez se você, minha tia, que frequentou a academia das letras e hoje trabalha na das fardas, se desse ao trabalho de ser um pouco intelectual, não houvesse gente comendo churrasco no asfalto nem na varanda gourmet.

É o seu pensamento, você brasileira média, retrato perfeito de sua classe, que define e difunde como pensa e, consequentemente, se conduz a nação.

Só que eu também sou classe média. Transito por entre os três almoços de domingo e, por isso, vejo.

Mas que faço eu? Em nome da paz familiar, em nome da paz social, sorrio e calo. Que tal um sorvete, minha tia?

Nenhum comentário:

Postar um comentário